Coleção Figueiredo Ribeiro - Abrantes
Artista: Pedro Valdez Cardoso
Curadoria: Ricardo Escarduça
Local: Biblioteca Municipal Dra Elsa Grilo
Horário de funcionamento:
2ª feira a 6ª feira: 9h00 – 13h00 / 14h00 – 17h00
Sábado e Domingo: 10h00 – 13h00 / 15h00 – 18h00
Folha de sala:
de formas mudadas em novos corpos
obras de Pedro Valdez Cardoso na Colecção Figueiredo Ribeiro – Abrantes
“De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho a falar”[i]. Desde logo, a elocução inaugural do primeiro livro ovídiano surge enquanto carácter matricial e força propulsora do composto de virtudes e sacrifícios, de anseios e temores, de proezas e vícios dos deuses e dos seres-humanos, de tal modo aí, na nuvem de mistérios, no feixe de paixões, no cúmulo de incidentes, sobressai a impermanência, a transfiguração, a metamorfose enquanto tema e forma e, sobretudo, verdade possível de um mundo onde nada é estável, onde tudo é fluxo.
Dos estados de trânsito, dos segredos nos limiares, onde muito assoma e se clareia e muito recua e se escusa, onde se confundem e combatem um já-não-isto e um ainda-não-aquilo, sabemos só que ditam desapegos do que foi e concedem possibilidades do que será. Pois, se o torso curvo é tanto sintoma do castigo quanto iminência da catapulta, a verdade não será o alheio fixado nos corpos vivos e nas coisas inertes, que só aguardam o suplemento litúrgico dos metafísicos ou sacerdotes, e não antecederá a codificação na obra de arte que já a contém por adequação, que se contenta só em testemunhar os afectos e sentidos que representa. O que podemos esperar, em que podemos esperançar, sem que a verdade aquiesça e sucumba às grandes proposições e discursos?
Se a obra de Pedro Valdez Cardoso (PVC) provém da problematização da identidade, do eu sou isto, no caminho do fazer invocando o isto – a convenção habitual, o molde social, o saber especial – que qualifica e confisca, que rapina o brilho, que nivela o colectivo no raso do pouco e soterra o ser-humano na míngua do igual, tão mais tal caminho do fazer importuna o isto que já-é por se inclinar para o eu sou do poder-ser. Pois aí, ao dispor-se à disposição que interroga o ser enquanto anterioridade do que é, o ser-humano alcança e recebe de si o eu sou que é seu e a que pertence. Aí, no caminho do poder-ser, PVC esquiva-se à fixação do pensamento no isto e às dicotomias apofânticas que seduzem a cultura desde a aurora clássica, guarda para si a impossibilidade de se confiar à obstinação tética que coisifica e esquece o ser, por enredar a verdade e o ser num pensar principiador enquanto ir-à-proximidade e acenar ao que vem antes da chegada do vir, num pensar criador que traz um pensamento à possibilidade do pensável.
Talvez, ao iludir-se com as verdades arbitrárias com que supõe explicar os corpos e as coisas e os emudece, o ser-humano se leve demasiado a sério e se esqueça de jogar o jogo do sério que, paradoxalmente, consiste em brincar. Não será demasiado arriscado salientar a predominância do brincar no caminho do fazer de PVC, e a seriedade irónica com que, em subtis citações da bela arte, desfaz e faz, desfigura e recompõe, joga com formas recorrentes que reconfigura em corpos diferentes, de cada vez permitindo dizer o que são, de cada vez escutando o que têm para dizer, tal qual a criança que, de cada vez, explora e experimenta, e cria mundo, pela primeira vez.
Reside aqui a inadequação da obra de PVC às tautologias da representação, por não se conter à substituição de um inteligível que antecipa e regula a dissemelhança do sensível, por não se ajustar à obsolescência do apontar-para o já-pensado. O visível na obra de PVC encobre o duplo grau de um ausente mais requintado, pois, no fundo, não só não se basta a mostrar que isto ainda não é como sequer esclarece o é do isto, e reserva para si uma medida de incompletude e estranheza, a extensão do ainda-não-pensado e irrepresentável. No fundo, o fundo sem big-bang nem genesis que sustem o que desponta e se edifica, o ir-ao-aceno-e-trazer-do-vir é o existir fugidio e velado que abre caminho e conspira, é o existir no e pelo potencial que interroga, onde a verdade originária e autêntica é o que acontece no caminho, e onde o ser é o processo de ser-se, é o vir-a-ser do que se doa à doação e se desoculta desde o insondável que reserva de si, é o vir-à-presença do que brota e resplandece em si no aí em que está presente.
E se, em tal inadequação, a iconoclastia que recorta a caveira da finitude da ampulheta e subtrai a animália do poder da insígnia não exclui o uso do símbolo e do ícone, tão-pouco tal uso suporta os protocolos semânticos e exerce os instrumentos reguladores que traduzem visões de um mundo já-sendo. Do mesmo modo em que o poeta romano amalgama e deforma formas em que des-cobre corpos, reluz, na obra de PVC, o indeterminado da ambiguidade e da polissemia que surpreende, de tal modo sob a uniformização que amordaça os corpos e as coisas pode estar latente a mumificação que os envia para um novo mundo, lá para o des-conhecido depois dos limites e domínios, lá para onde há dragões e monstros que ameaçam só os temerosos da verdade originária e autêntica, do que acontece no caminho. Nesta pensatividade dinâmica da linguagem, a miscigenação do erudito e do burlesco, do solene e do modesto, é, com a mordacidade refinada que logra o busto de alguma autoridade ao elevar a significância do vulgar ao plinto, outro uso da linguagem enquanto trazer do impronunciado ao dizer, é uma pertença e instalação na linguagem enquanto linguagem instauradora, no sentido mais radical de fundação, princípio e envio desde o in-dito de um impensado que vem ao dizer próprio, ao dizer onde se manifesta o ser que vem e dá sentidos, o que deixa-aparecer o que está presente, e que supera horizontes e propõe mundos ao mundo.
É no caminho que recua à interrogação do ser, e não do é dos seres, é no instalar-se na linguagem enquanto lugar do pensável por vir, e não do pensado já vindo, que a obra de PVC se destina, e propicia uma reflexão sobre a questão da identidade, do eu sou isto sufocado por verdades duvidosas que empanturram e alienam, a reflexão onde se desdobra a autonomia da co-pertença e dupla liberdade do mundo se revelar e do ser-humano se determinar. Pois aí, onde os corpos e as coisas são o que neles emerge desde o seu interior, o ser-humano acolhe e responde ao apelo do mundo a que pertence, e escuta, no sentido em que ausculta, em que sente, o que vem ao dizer. E aí, o ser-humano consuma a sua essência enquanto ser que compreende o que se revela e, sobretudo, compreende-se.
Escorada numa selecção de obras de PVC colhida no acervo da Colecção Figueiredo Ribeiro – Abrantes, esta exposição propõe-se, igualmente, enquanto disposição para o caminho e interioridade da experiência, da inseparabilidade entre mundo e ser-humano. Não obstante insinuar uma proveniência e um destino, procura o conglomerado de acontecimentos, a folia de aparecimentos em que PVC é mestre de cerimónias, as instâncias criadoras em que, regressando ao poeta, “o que foi antes fica deixado para trás e torna-se o que não era, e todos os instantes são renovados”[ii], onde o ser-humano comparece ao dizer do mundo, e de si.
Ricardo Escarduça
[i] Metamorphoses, Ovídio; tradução Paulo Farmhouse Alberto; edição Livros Cotovia, 2007, pg. 35.
[ii] Ibid., pg. 369 (em que o autor cita o Discurso de Pitágoras).
Sobre a Col. Figueiredo Ribeiro - Abrantes:
Constituída nos últimos 25 anos, a Coleção Figueiredo Ribeiro reflete sobretudo o gosto pessoal de quem a constituiu. Maioritariamente composta por peças de média e pequena escala, abrange a criação artística desde os anos 70 até à atualidade. Encontra-se em comodato com o Município de Abrantes e tem núcleos significativos do trabalho de vários artistas.